Só controlas o que podes destruir
Paul Atreides foi treinado, preparado, toda a vida para um dia cumprir o seu destino e trazer a verdadeira liberdade a um povo oprimido num mundo distante, um planeta árido, hostil, habitado por vermes gigantescos simbolizando o poder indomável da natureza perante a havidez humana; esta personagem imensa, Paul Atreides/Paul Muadib é uma figuração de Jesus Cristo, o profeta que trouxe também ele a um povo oprimido a palavra da salvação, mas a salvação deste messias passava por uma profunda luta interior, a aceitação de que o ascendente do espírito sobre a carne é a única forma de sublimação, sendo assim, durante toda a história de “Dune” o autor confronta-nos sempre com a simetria espírito/matéria, ying/yang, traduzida na busca de Muadib pela união com a natureza e com os seus espíritos ancestrais através da Água da Vida, uma das cenas centrais de toda a história. Só depois deste momento de verdadeira ascenção Paul se encontra finalmente com o seu destino e se transforma naquilo que o povo Fremen (os povos da Palestina) necessitam para encontrarem o seu caminho dourado, o caminho para a “verdadeira” liberdade; Paul é o Messias desta nova ordem, da luta pela justiça, pela reposição da ordem natural das coisas, pela recuperação da identidade de um povo e também da sua profunda conexão com a natureza, a sua terra, o seu mundo. Mas tal como Macbeth, Muadib é ele próprio um prisioneiro do seu destino, produto de uma farsa, de uma mentira, uma fábula cozinhada durante milénios, e tal como Jesus Cristo, a sua mensagem original foi corrompida e o seu conflito intrínseco anuncia uma guerra apocalíptica em nome da justiça. Muadib é uma sombra negra, um avatar terrível, medonho, horrendo, a espada do destino travestida de mensagem de liberdade, ele próprio é a sua negação, a prova de que o caminho dourado do espírito sobre a carne foi infectado por uma vontade de vingança, um ódio para com o opressor que o faz ainda mais terrivel, cruel e sanguinário, e, paradoxalmente, realmente invencível. Jesus Cristo disse que apenas com a sublimação do Espírito o homem alguma vez conseguirá a transcendência para ser mais do que é; e essa é a única forma de ser verdadeiramente livre. De se libertar de tudo. “Só controlas realmente o que podes um dia destruir”, disse Paul Muadib: é porque um dia vamos morrer que temos vontade de viver, é porque um dia o amor acaba, que temos tanta vontade de amar, é por a democracia ser tão frágil que temos de lutar contra a ascenção dos fascismos e da intolerância… e só seremos um dia verdadeiramente livres se nos libertarmos de tudo.