Desumanidade

Desumanidade

Share

Seres humanos deitados no lixo. Ressalvo a reflexão imposta sobre os limites da nossa própria humanidade, e as implicações que casos destes provocam, quer os queiramos enfrentar, quer não; foi uma mulher, mãe, e foi o seu próprio filho que deitou no lixo, e aqui o profundo simbolismo do acto: ‘deitar um ser humano no lixo’, convém deixar assentar esta imagem, remetendo não apenas para um abandono de alguém que não queremos, mas quanto a mim a algo mais profundo e lato: o abandono por completo da nossa humanidade, do nosso estatudo civilizacional. Quem é inteligente tem de fazer a pergunta que se segue: quem é esta mãe? O que a trouxe até aquele contentor do lixo? Perguntas que devem ser feitas também noutros contextos, sem medo ou preconceito, as perguntas de quem quer perceber o quadro, olhando mais de longe, relacionando e interpretando; perguntar quem são os agressores masculinos na violência doméstica, e que os levou aquilo, perguntar quem são os pedófilos, os agressores sexuais, quem mata ou quem abusa.

O imperativo civilizacional passa quanto a mim pelo humanismo de entender o quadro não observando de perto, este ou aquele caso, mas dando dois passos atrás e olhando a pintura mais de longe, para perceber exactamente o que temos na nossa frente, the big picture, só assim poderemos saber quem é esta mulher e o que a levou até aquele contentor onde deitou o seu próprio filho. E daqui a ponte para a política, para as organizações sociais, para a própria sociedade como um todo; a luta da esquerda contra a pobreza, por salários mais justos, pelo aumento do salário mínimo, pelo rendimento mínimo, a luta que tem de ser travada contra a indigência é exactamente o único antídoto possível para este abandono da nossa própria humanidade, o tal imperativo civilizacional de que falo, impedir a queda no abismo interior e deixarmos de ser o que somos, quando nos falta a dignidade no dia a dia. Deixar cair também a jactância de dizer “eu nunca”: aprender que qualquer um de nós, no contexto certo, na pobreza, com fome, sem família, depois de ter sido abusado/a, depois do desespero, da solidão, quando passamos a tentar sobreviver em vez de viver, nos tornamos noutra coisa diferente, mais escura, estranha e desumana.