Ambição e desespero: A história de "Cyberpunk 2077"

Ambição e desespero: A história de “Cyberpunk 2077”

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Chega ao prólogo a história do unicórnio empresarial chamado CD Projekt Red, a software house que criou um dos mais populares, e rentáveis, jogos da história, “Witcher 3”, e que em meados de 2012 parecia ter o mundo a seus pés. Dos espojos de “Witcher 3” renasce no entanto um sonho antigo, desmesurado e ambicioso, recriar “Cyberpunk”, um obscuro videojogo de Arcadas da década de 80, injectando-lhe toda a tecnologia disponível em 2012, novos algoritmos, motores gráficos desenvolvidos encima do state of the art de sistemas integrados de Inteligência Artificial. Objectivo? Criar uma cidade virtual chamada “Night City”. Para trazer à vida o sonho criaram uma divisão própria, a RED, e departamentos inteiros de desenvolvimento, o que levou a uma vaga de contratações de developers (programadores) sem precedentes na história da empresa, para o que seria o seu mais ambicioso projecto até ao momento. “Cyberpunk 2077”, como foi baptizado o projecto, seria muito mais do que um jogo, seria acima de tudo uma verdadeira experiência imersiva. Na cidade virtual “Night City” habitariam pessoas quase reais, unidades individuais com Inteligência própria, elementos de IA (Inteligência Artificial) incluídos num ultra-complexo motor gráfico desenvolvido quase do 0 para o efeito, o “RED4”; e o jogador por sua vez iria se movimentar num ambiente completamente interactivo, com pessoas com as quais poderia falar e interagir, todas elas com um guião ou propósito, não tendo o jogador propriamente uma missão, mas sim uma vida para viver naquela cidade imaginária, recheada de perigos, fascínios e desafios.

Depois de tornar público o seu caminho a percorrer, a CD Projekt Red tomou o mundo de assalto, num misto de assombro e incredulidade; apesar do cepticismo de muitos engenheiros de software que desde cedo desconfiaram da capacidade de desenvolver um real sistema de IA capaz de cumprir os objectivos traçados. Mas a empresa Polaca manteve-se firme no seu rumo, “Night City” seria exactamente aquilo que imaginaram e “Cyberpunk 2077” uma charneira na história dos videojogos, um verdadeiro game changer, o primeiro videojogo completa e verdadeiramente imersivo, habitado por gente real, em que o jogador teria não uma missão, nem níveis, mas uma vida para viver, dias ou semanas fazendo parte de um organismo multi-conexo, como numa verdadeira cidade; algo nunca antes sequer tentado na industria, quanto mais feito. Com um orçamento bem acima dos 10 milhões de euros e com uma ajuda estatal do governo Polaco em cerca de 7 milhões de euros, a CD Projekt criou um exército de developers que ascendeu a cerca de duas centenas. O ideia era acabar “Cyberpunk 2077” em 2 ou 3 anos, apontando a sua release para o Natal de 2015. O jogo bebeu a inspiração para a sua concepção gráfica na cultura Cyberpunk dos anos 80 e 90, de “Blade Runner” e “Blade Runner 2049” e da obra de William Gibson, em particular de “Neuromancer”. As primeiras imagens passadas para a comunidade mostravam uma atmosfera futurista e distópica de um detalhe e beleza gráfica quase sem paralelo; carros, ruas infindáveis, luzes neon, noites tão brilhantes como os dias, pessoas reais cruzando-se com o jogador, a tal vida dentro da vida de “Night City”. O assombro da comunidade gamer foi total, mesmo dos amantes das artes visuais, como eu, que não podiam de forma alguma ficar indiferentes a um projecto que iria revolucionar por completo a entretenimento com ondas de choque imprevisíveis, do cinema ao teatro, das plataformas de streaming aos grandes estúdios de cinema: vinha aí “Cyberpunk 2077”, e nada voltaria a ser como dantes.

Cyberpunk 2077

As infindáveis discussões técnicas nos fóruns da comunidade de developers alertavam sobretudo para as actuais limitações dos algoritmos nos motores gráficos usados no desenvolvimento da “Night City”, o REDEngine 4, e a tremenda dificuldade de os cruzar com os sistemas de IA actuais, em particular pela necessidade da criações de nós numa rede interconectada de “agentes inteligentes”, sub-rotinas autónomas dentro de um sistema administrado segundo padrões que seriam completamente revolucionários para o que se faz hoje em dia. Não que a tecnologia não exista, ela já foi usada e testada por exemplo na industria do cinema, nos efeitos visuais de “Lord of the Rings”, mas não na escala ou com as necessidades de “Cyberpunk 2077”. Relatos de dentro da CD Projekt Red descreviam um ambiente de crescente desespero perante o amontoar de desafios e problemas técnicos; o “crunch” (não aumentar prazos de entrega e manter o mesmo número de developers), uma prática de gestão tóxica que não era costume da CD project, começou a ser a norma, e várias deserções oriundas das próprias equipas de desenvolvimento deixavam testemunhos inquietantes no reddit, descrevendo equipas inteiras a trabalhar 12 a 14 horas por dia, sem receber horas extraórdinárias. Demissões de elementos chave na direcção de projecto começaram por fim a levantar a suspeita que algo de sério se estava a passar. Relatos de subcontratações de developers com salários de miséria de 750 ou 800 euros foram a gota de água para a comunidade gamer, que ainda por cima, a juntar a tudo isso, contabilizou sucessivos adiamentos do lançamento do videojogo: de 2015 para 2016, de 2016 para 2020, e finalmente para Dezembro de 2021, com um orçamento total que terá ultrapassado os 314 milhões de dólares!

Logo após o lançamento se começaram a confirmar as piores suspeitas: o jogo vinha cheio de bugs, a IA que controlava os elememtos da Night City pura e simplesmente não funcionava e era completamente impossível jogá-lo na Playstation. Tal como alertavam desde há muito vários Engenheiros de Software, e alguns dissidentes da própria CDProjekt, a equação de conjugar um engine gráfico ultra complexo e um sistema de integrado de Inteligência Artificial que forçosamente teria de ser desenvolvido “from scratch” para o jogo foi um objectivo demasiado ambicioso, uma ponte que foi longe demais, mesmo tendo o nível de investimento que “Cyberpunk 2077” teve. Imperdoável para a comunidade gamer foi no entanto a ganância da direcção da CDProjekt RED que, mesmo sabendo dos tremendos problemas do jogo, e contra o conselho dos directores de projecto da própria empresa, o decidiu lançar mesmo assim, numa tentativa desesperada de recuperar pelo menos uma parte do investimento. A ideia era conseguir financiamento líquido para desenvolver patchs de correcção durante o ano de 2021 e 2022, ou dito de outra forma: para acabar o jogo. O mal no entanto estava feito, e em janeiro deste ano a Sony desferia um golpe quase mortal na CDProjekt, e numa acção sem precedentes na história dos videojogos decide retirar “Cyberpunk 2077” da loja da Playstation. Nem eu próprio esperava uma coisa destas, na verdade, sabia-se que ia ser feio, mas não desta forma. Tal como Ícaro que tentou voar demasiado alto, a CDProjekt tentou o impossível e falhou, mentindo à comunidade gamer e aos clientes no geral, lançando um jogo que conscientemente sabia que não estava terminado. A empresa acabou por emitir um pedido de desculpas formal no twitter através de um dos seus directores, o que acabou por ser entendido como apenas uma tentativa grotesca de explicar o inexplicável, atirando para a lama todo o seu departamento de controlo de qualidade e aumentando ainda mais o backlash contra a CDProjekt que entreatanto acumulava uma descida brutal das suas acções em bolsa e prejuízos avultados, apesar de em Fevereiro terem sido distribuídos prémios aos seus principais gestores, que pouco tempo depois acabariam despedidos na sua larga maioria. Tudo isto parecia incompreensível e mais uma vulgar história de um unicórnio do mundo globalizado neo-conservador que não conteve a ganância em troco de afundar uma das empresas de desenvolvimento mais creditadas da actualidade.

Apesar de tudo, e feito o noves-fora, a moral da história reside por um lado, sim, numa empresa pequena que se tornou grande e que abraçou um projecto demasiado ambicioso e complexo para levar até ao fim, mas sobretudo implicou uma profunda reflexão por parte de gamers, developers e público em geral no que diz respeito às finas fronteiras que hoje se colocam a quem deseja lucro acima de tudo, e a qualquer preço, mesmo que para isso se venda um nome e uma reputação. A questão é se compensa, e tem de compensar senão não se suicidavam assim na praça pública, não desta forma tão óbvia e patética. Os gestores da CDProjekt ficaram milionários com este jogo que iria mudar a paisagem do entretenimento, mas que em nome do lucro rápido e fácil se tornou numa piada de mau gosto; e se compensou para eles significa que este ciclo de capitalismo básico que invadiu a industria dos videojogos veio para ficar, e é isto que assusta gamers mas não só.

Acaba por ficar no entanto o mote e a estrada aberta que significa “Cyberpunk 2077”, que de qualquer forma definiu o futuro dos videojogos e do entretenimento no geral, colocando a fasquia na total imersão do jogador (do espectador) no cenário, no ambiente, concretizando assim a profecia de 2012.

E sim, acabou enfim por mudar tudo.