O Jogo da Imitação

O Jogo da Imitação

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Alan Turing, grande matemático e génio, imaginou um jogo de perguntas: duas cadeiras, uma mesa, e na sua frente, alguém exactamente igual a si; o mesmo rosto, o mesmo corpo e até a mesma roupa. O objectivo é fazerem um ao outro uma série limitada de perguntas, digamos, vinte ou trinta perguntas e com isso conseguir perceber qual dos dois é humano, e qual é a máquina. Seria possível? O que poderia efectivamente distinguir um humano de um ser artificial? O que é realmente a Inteligência Artificial (“Strong A.I.”)? Poderá alguma vez vir a existir?

Todos nós crescemos rodeados de fábulas cinematográficas sobre a criação de seres artificiais dotados de inteligência comparável à humana e normalmente força superior, imunidade a doenças ou outras características que a evolução natural não nos providenciou. Mas a realidade tem-se mostrado muito mais cáustica e pragmática do que o romantismo sonhador que o cinema foi construindo através dos tempos. Na verdade, sabe-se hoje que a I. A. estará muito mais longe para a humanidade do que, por exemplo a chegada a Marte, a descoberta da cura para o Cancro ou mesmo a exploração espacial das estrelas mais próximas. Estou com isto a dizer que poderá ser um empreitada para daqui a 50 ou 100 anos. Mas porquê? Qual o problema? Segundo a famosa lei de Moore o número de transístores duplica em cada 18 meses desde a invenção do circuito integrado, ou seja, a capacidade bruta de processamento e armazenamento de informação seria astronómica daqui a 20 ou 30 anos, não seria isso um indicador indesmentível da criação de Inteligência Artificial? Hoje em dia, no meu dispositivo móvel tenho toda a capacidade de processamento do mais potente computador da década de 80…multiplicada por 1000. É difícil sequer imaginar como serão as unidades de processamento daqui a várias décadas, então, qual o problema? Porque estão os engenheiros e cientistas modernos tão pessimistas quanto ao desenvolvimento da Inteligência Artificial?

Eu sou muito esquecido. Aqui há umas semanas, depois de chegar a casa, verifiquei horrorizado que me tinha esquecido da minha carteira algures, em algum sítio de entre os muitos onde tinha estado num normal dia de trabalho. Poderia ter sido num café, no restaurante, no pequeno quiosque onde por vezes comprava o jornal diário… enfim, existiam uma enorme quantidade de hipóteses. Resolvi por isso manter a calma e sentar-me nas escadas da minha casa e tentar percorrer mentalmente o meu trajecto desde que saí de manhã, até que retornei cerca oito horas depois. Pragmaticamente, tentei organizar mentalmente por ordem cronológica o meu percurso desde que bati a porta de casa. A minha mente começou então a fabricar imagens, recortes de realidade, instantâneos do meu passado recente, e consegui ver muito nitidamente, ali na minha frente, a porta de casa, o meu carro, a autoestrada, o quiosque e o velhinho estendendo-me o jornal desportivo que lhe comprei. Mentalmente, como num sonho, percorri a escadaria para o escritório, vi os sorrisos ensonados dos meus colegas e mais tarde, a tradicional galhofa no restaurante onde costumávamos ir almoçar por volta do meio dia. Foi então que reparei na minha carteira. Estava pousada ao meu lado no restaurante, perto do copo meio cheio de água que vi com toda a nitidez. Isto que eu consegui fazer com aparente facilidade, é algo que qualquer ser humano consegue também fazer, algo que está apenas acessível a um ser vivo de inteligência superior (não me estou a pôr em bicos de pés), e algo também que os engenheiros actuais duvidam que alguma vez uma máquina conseguirá fazer. O que eu fiz, foi literalmente “ver” o que não existe, aliás, eu nem sequer vi no sentido biomédico do termo, em vez disso, reconstruí a realidade em breves borões de imagens memorizadas; mas de onde vêem exactamente essas imagens? E como estavam elas organizadas no meu cérebro? Hoje sabemos que quando nos lembramos de coisas recuperamos mentalmente recortes de episódios passados, catalogados num repositório de outras recordações; o nosso cérebro parece fazer uma espécie de comparação e extrapolação de forma recriar o passado cruzando memórias visuais avulsas, com cheiros, sons e outras marcas sensoriais. Do estudo aprofundado da electroquímica cerebral sabe-se que o cérebro humano não raciocina reconhecendo estruturas geométricas, por exemplo, nem analisando de uma forma total a realidade exterior, mas antes executando uma misteriosa  e estranha álgebra assente em abstracções e simbolismos que funcionam como uma aproximação da realidade física, ou dito de outra forma, em padrões. Seria impossível gravar o que “está lá fora” de uma forma completa, teríamos de ter cérebros do tamanho do planeta terra, sendo assim, recorremos a um mecanismo de catalogação ainda desconhecido, gravando dessa forma apenas o que mais interessa. A primeira característica da Inteligência é ter por base o reconhecimento de padrões articulado com uma álgebra própria de forma a extrapolar e abstracionar a realidade e com isso poder raciocinar, aprender e recordar. O mecanismo da memória continua contudo, apesar de alvo de profundos estudos ao longo de décadas, em grande parte desconhecido, e pensa-se que uma camada operacional da memória humana continua completamente escondida da ciência. Sem essa peça do puzzle, não será possível construir um dia uma máquina inteligente.

olho

Sabe que é um “olho”, certo? Até o consegue decompor nos seus componentes: “sobrancelha, iris, pestanas…”; algo que nenhuma máquina consegue fazer no estado actual da tecnologia. Pelo menos com a rapidez e da forma como voçê o faz.

De todas as coisas que os seres humanos se podem gabar de fazer bem, uma das que decididamente não podem mesmo dizer é que pensam rápido. Na verdade, pensamos aproximadamente à velocidade de uma carroça puxada por burros, o que sugere que a pressão evolucional não prestigiou a velocidade de pensamento como um factor decisivo. Pensar depressa não é sinal de inteligência: as máquinas de calcular e os computadores modernos efectuam milhões de operações numa fracção de segundo, e no entanto, são tão inteligentes como um mexilhão. O facto de pensarmos muito devagar sugere algo que os cientistas que versam o cérebro humano desde há muito desconfiam: pensamos devagar porque provavelmente operamos logicamente enormes volumes de informação de uma só vez, em oposição aos computadores do século 21 que processam no máximo 64 bits em cada transição de clock, ou seja, em cada fracção de tempo, mas que no entanto executam estas operações a uma velocidade próxima da luz. Enquanto os processadores modernos executam biliões de operações de forma a produzirem um output em menos de um segundo, os seres humanos chegam a demorar quase um segundo a decidir se uma coisa é branca ou cinzenta, se duas vezes oito é dezasseis ou quatro, ou se cheira a gasolina ou petróleo. A questão é que o volume de informação que uma máquina actual processa em cada minuto é incomparavelmente menor da que qualquer ser humano processa em alguns segundos. Pensamos devagar, mas pensamos muito. E há outra razão de que desconfiam os cientistas para pensarmos devagar: a forma como o nosso cérebro está construído. Essa é aliás outra condição para a criação dum organismo cibernético dotado de verdadeira inteligência: a forma como as coisas estão fisicamente arrumadas e interligadas dentro da cabeça… ou do CPU.

O transístor foi uma das maiores invenções humanas, devido a ele foi possível toda a revolução digital da década de 80 e o desenvolvimento de redes globais de informação e comunicação como a Internet. Um transístor é como um interruptor comandado por um sinal eléctrico aplicado entre os terminais da Base (a perna do meio) e o Colector (quem olha de frente: o da direita); quando existe corrente a entrar na Base, o Colector e o Emissor ficam conectados, fechando o circuito através duma resistência muito baixa, transferida da ligação entre Base e Colector, a trans-resistência (trans-resistor) que lhe dá nome. O princípio é muito simples, mas as implicações enormes. Sendo um interruptor, significa que pode armazenar um bit de informação, uma resposta inequívoca a uma pergunta com V-Verdadeiro ou F-Falso. O céu hoje esteve azul? Resposta: 1. Organizando transístores em circuitos lógicos, os engenheiros criaram portas lógicas que executam operações de aritmética booleana, como as Portas “And”, “Or” ou “Xor”, estes circuitos, integrados em chips contendo milhões de portas e transístores são a base das memórias RAM, ROM e dos Microprocessadores, e por sua vez, das Unidades Centrais de Processamento dos computadores modernos, os CPU’s. A questão é que o nosso cérebro não segue esta arquitectura, os nossos neurónios não têm três pernas, nada “entra” dum lado e “sai” do outro. A arquitectura dos CPU’s modernos é bidimensional, com entradas e saídas respeitando uma distribuição plana e horizontal, mas a do cérebro humano é esférica, sugerindo interligações complexas entre várias zonas, interdependência e afectação lógica. Durante um raciocínio humano ao nível dos neurónios não há propriamente nada a entrar ou a sair, tudo se passa numa escala mais macro e são zonas inteiras do cérebro que se “acendem” e “apagam”, transferindo de uma forma ainda completamente desconhecida enormes volumes de informação entre vários hemisférios cerebrais. Para uma máquina ascender verdadeiramente na escada da inteligência artificial deverá abandonar a arquitectura 2D dos circuitos actuais e implementar uma distribuição de componentes assente numa escala 3D, usando um espaço volumétrico como meio de transmissão e processamento de informação. Provavelmente estes organismos assentes em lógica neuronal não poderão usar padrões tecnológicos semelhantes aos transístores MOS ou CMOS, mas a outra coisa qualquer que ainda nem sequer foi inventada. O desafio técnico que isto envolve é simplesmente ciclópico; estamos a falar de organismos cibernéticos que usam uma tecnologia provavelmente assente em carbono, que aquece menos e é mais resistente à oxidação, que implementa um tipo de lógica deduzida a partir do reconhecimento e álgebra de padrões, que também ainda só existe numa forma muito larvar e especulativa, que usa a complexa teoria das redes neuronais como base para uma organização das unidades de informação (chamemos-lhes neurobits) distribuídas num espaço 3D, e ainda com a capacidade de se reconfigurar polimorficamente a cada operação efectuada. Bom, isto é um nível e uma escala de tecnologia da qual estamos separados não por 10 ou 20 anos mas por 100 ou 200 anos.

A natureza demorou mais ou menos 8 biliões de anos a produzir qualquer coisa semelhante a um cérebro humano dentro dum corpo de macaco, e o ser humano de hoje demorará certamente vários séculos a conseguir criar algo como um organismo cibernético dotado de Inteligência Artificial. A empreitada é de facto duma escala de dificuldade apenas comparável a outras como a da Exploração Intergaláctica do Universo, ou até talvez da descoberta da Teoria de Tudo. Chegaremos provavelmente à cura do Cancro antes de construirmos o primeiro Robot pensante, e no entanto, as nossas histórias e o nosso imaginário fervilha de seres artificiais que falam, que sentem amor e raiva, que são muito semelhantes a nós em particular naquilo que nos torna humanos: as nossas emoções, os nossos sentimentos. Mas será isso de facto uma vantagem? O que ganharia verdadeiramente a humanidade em criar um ser artificial tão inteligente como os engenheiros que o conceberam? No filme “2001, odisseia no espaço”, acompanhamos uma avançadíssima missão a Júpiter por parte da nave Voyager da NASA, dotada dum computador de ultima geração, o HAL9000, na fronteira da Inteligência Artificial. A meio da missão, a máquina parece adquirir consciência, e com isso, auto-preservação: começa a ter medo (um sentimento muito humano) que os seres humanos que “infectam” a missão a ponham em risco e a comprometam irremediavelmente. A máquina tem no fundo receio das imperfeições humanas, da ingenuidade, da solidariedade, da humanidade de cada um dos elementos da tripulação, e socorrendo-se do seu pragmatismo, toma a única solução possível e lógica: a tripulação deve ser eliminada. E metodicamente, o HAL9000 assassina um a um, todos os tripulantes humanos, à excepção de um, a nossa personagem principal, que mais tarde o acabará por desligar. A suprema ironia desta fantástica história de Arthur C. Clarke é que a máquina HAL9000, até então perfeita, dotada de verdadeira I.A, falha justamente quando adquire um sentimento que reconheceríamos imediatamente como muito humano: o cagaço. Foi justamente quando se tornou verdadeiramente humana e pensante que começou a falhar, tal como falham os seres humanos que a criaram. Esta história levanta a questão que muitos encaram como central relativamente ao advento da Inteligência Artificial; para quem, e para quê inventar um ser artificial dotado de inteligência comparável à humana?

Somos inteligentes é certo, mas o nosso corpo é um grande problema. Os seres humanos, comparativamente à maior parte das outras espécies do planeta, estão bastante abaixo nas aptidões físicas. Numa perspectiva cósmica então, somos demasiado pesados, demasiado fracos, com demasiada água, precisamos de respirar um gás terrível que nos oxida e mata lentamente, resistimos a doses ínfimas de radiação, de pressão ou mesmo de gravidade, estouramos como um balão quando acelerados para lá de certas velocidades e temos uma esperança de vida, na melhor das hipóteses, de 70 ou 80 anos. O nosso organismo evoluiu numa perspectiva adaptativa, ou seja, numa simbiose estreita com o meio ambiente; fomos feitos para viver aqui, no planeta terra e descendemos de pequenos mamíferos semelhantes a ratos, e visto bem as coisas, até nem nos saímos mal, dadas as circunstâncias. Os seres humanos fizeram sobretudo valer o seu grande atributo evolutivo que foi chave para serem o que são hoje: a sua extraordinária inteligência. Mas continuamos muito frágeis, muito pouco resistentes  e robustos. Se tivéssemos de nos sentar em frente a um estirador e pensar convenientemente num corpo ideal para um ser humano encarar, por exemplo, viagens às estrelas mais próximas, como seria o resultado final? Para já, este ser humano biónico não seria feito de carbono, mas provavelmente duma liga metálica ultra resistente e completamente inerte; dispensaríamos qualquer líquido para refrigeração ou lubrificação, isto porque os líquidos estão muito sujeitos a expansão ou dilatação com o calor; este super-ser também não necessitaria de se alimentar, de ter pulmões ou coração, já que extrairia energia dum micro-reactor de fusão nuclear incorporado, por exemplo, alimentado a água pesada e hélio 3; não teria pernas, usando um meio de locomoção assente em plataformas de levitação magnética, mais suave e menos sujeito a stress mecânico, mas teria uma versão melhorada das actuais mãos humanas, com mais dedos, e mais articulações, e em vez de olhos, usaria vários pares de sensores electromagnéticos varrendo todo o espectro de radiação desde as micro-ondas aos raios-x, produzindo com isto imagens sensoriais em todos os comprimentos de onda. Este ser biónico teria uma percepção da realidade comparável à de um deus da nossa mitologia, e dado que seria dotado duma pilha nuclear, poderia viver entre 50000 a 400000 anos. A retro engenharia do cérebro humano poderia entretanto ter evoluído ao ponto de ser possível incorporar depois um cérebro humano feito apartir de elementos como o titânio, ligas de carbono ou ainda outros materiais não sujeitos à oxidação e degradação a que o nosso cérebro de hoje está sujeito.

Muitos cientistas defendem que o verdadeiro futuro da cibernética e da robótica, é substituir tudo aquilo que nos seres humanos é imperfeito, ou insuficiente na nossa caminhada rumo ao nosso destino, algures nas estrelas. Os robots farão literalmente parte de nós. Teremos peças, órgãos e dispositivos que nos permitirão vencer o tempo e nos tornarmos finalmente imortais.

Mas manteremos o que nos torna únicos: o que temos dentro da nossa cabeça.

E no fundo, continuaremos tão humanos como somos hoje. Realmente humanos.