O abismo interior
Na cena icônica de “Taxi Driver”, Travis olha-se no espelho, olhando também ele próprio através do plano directamente para a audiência, para nós espectadores, e pergunta, ironicamente, se estão a “falar” para ele, numa interpelação que Scorcese faz à plateia, nos implicando formalmente a todos como testemunhas e validando a transformação da personagem, o seu apocalipse interior, o seu mote, o seu destino: sendo um marginal na borda do prato da sociedade, rejeitado, chegou pois a hora de ele próprio rejeitar a sua humanidade mutando-se em algo que já não é uma pessoa, mas um símbolo, um instrumento para a sua própria missão. Nunca antes o cinema tinha olhado de frente o apocalipse interior, a queda no abismo sentimental, ou dito de uma forma mais lata: o homem acorrentado ao seu destino. Tal como Travis, The Joker é alguém preso no seu mundo, e lentamente vai descendo a sua escada emocional até se transformar numa paródia dele mesmo (a comédia que invoca a espaços), um ser sem lugar ou tempo, a faca que a personagem que nos olha interrogativa usará para se fazer cumprir, implicando-nos em silêncio; sem escape ou alternativa transfigura-se na figura ascética e auto-mitificada de The Joker.
Todd Philips é um fã, tal como eu, de Scorsese, e mais do que usar como referência essa obra prima absoluta do cinema do último século que foi “Taxi Driver”, realiza um filme que se afigurará completamente incontornável nos próximos anos exactamente por nele se ensaiar esse abismo interior em que o ser humano pode cair, quando aprisionado, sem futuro ou passado, um pária sem lugar; homem versus destino, algo que testemunhamos também, pela mão de Scorcese, em títulos como “The Departed” , ou “Silence”.
‘Joker’ é também por outro lado um documento político; nele se explana em larga medida a dinâmica entre os grupos marginais e o poder ausente e opressor, o homem cidadão atropelado na engrenagem política, e nesse sentido é um filme transgressor e incômodo, tal como já tinha sido ‘Taxi Driver’, num tempo diferente, mas objectivamente no mesmo contexto. A sua aura anarquista, insinuando que qualquer um de nós está a um passo dessa tal marginalização social, através do desemprego, da própria doença mental invocada no filme, e de ser colocado perante o dilema de Travis ou Joker, tem tanto de polêmico como actual, o que em si é já algo de perturbador para o espectador e que merece debate e discussão.
Cinema visceral, para ver sem desesperar…