A Esquerda
As ideias de uma sociedade justa foram sendo equacionadas desde o século 19 por Karl Marx e Engels no seu “Manifesto Comunista”, partindo de uma reflexão: como deveria ser distribuída a riqueza de qualquer estado da forma mais justa possível, garantindo um mínimo a cada um? Eliminado as bolsas de pobreza, estes super-estados garantiriam uma sociedade de pleno emprego em que toda a massa humana estaria investida em prol da riqueza comum, da justiça social para com homens e mulheres, crianças e idosos; uma sociedade totalmente integrativa, em vez de exclusiva de castas, credos, idades ou sexos. Todos fazem parte e ninguém pode ficar de fora. Esta ideia utópica e evocativa teve duas interpretações, uma delas promovia além desta visão uma abordagem totalmente igualitária, onde as diferenças entre classes seriam eliminadas, que ficou conhecida como Comunismo, que nunca chegou a existir propriamente, e a outra, o Socialismo, que preconiza uma abordagem assente na reorganização do bem comum por uma entidade representativa do povo proletário, um órgão superlativo à própria organização humana , que garanta essa distribuição da riqueza e implemente a meritocracia. Esta visão germinou sobretudo das profundas contradições dos governos ancestrais e propõe em alternativa uma abordagem econômico-social pensada e reflectida, um produto típico da racionalidade humana, um modelo de grande complexidade, intrincado e confuso, assente em perspectivas filosóficas complicadíssimas, como o materialismo dialético, e em larga medida ininteligível e impraticável.
O facto do Socialismo ser na sua génese um modelo sócio-económico muito complicado de se entender, e em certa medida desfasado da condição humana, já que implica uma certa anulação das liberdades individuais para se atingir o ideal igualitário, levou a variadíssimas interpretações e reformulações, desvirtuando completamente o modelo de partida. Algumas dessas interpretações livres e enviesadas levaram a brutais estados ditatoriais, perversamente de esquerda, remotamente Socialistas, nascidos do já de si obscuro Socialismo Científico (Marxista-Leninista), como são exemplo a Coreia do Norte e o Camboja no tempo de Pol Pot e dos seus sanguinários Khmers Vermelhos, o que na sua essência não passam de vulgares estados ditatoriais, indestinguíveis dos outros que marcaram a nossa história.
Na sua concepção filosófica inicial, o Socialismo Marxista pressupunha a luta de classes como forma de acelerar as reformas sociais e a revolução como inevitável, preenchendo o vazio de poder deixado pela profetizada decadência das sociedades capitalistas. Por essa razão, o modelo Socialista transporta em si um ideal revolucionário de sublevação dos povos contra o imperialismo econômico, de insurreição perante o despotismo e as ditaduras, um ideal libertário que será a espinha dorsal da ideologia socialista das décadas de 60, 70 e 80.
A aura utópica e revolucionária de base filosófica do Socialismo Marxista, fez com que fosse a bíblia ideológica de várias lutas de guerrilha um pouco por todo o mundo e a plataforma política e filosófica para variadíssimos grupos terroristas ocidentais como o Baader-Mainhof Alemão ou as Brigadas Vermelhas Italianas, mas também Árabes, que na sua larga maioria são de clara inspiração socialista-marxista. Como aspecto central, transportam em si um ideal de luta pela justiça, de libertação e sublimação do homem através da luta armada, na perseguição de um ideal incorpóreo e de uma sociedade perfeita e utópica.
Os guerrilheiros pela causa são mais entidades mitificadas, um pouco à imagem do mujahideen, e do esteriótipo do herói romântico de esquerda, libertador dos fracos e dos oprimidos, como Che Guevara ou Ulrike Meinhof. O Herói Socialista é um mito, luta pela libertação dos oprimidos, sacrifica-se por um ideal solidário ,e é sobretudo um mártir, estando disposto a dar a sua própria vida a qualquer momento pela sua causa. O facto de nunca termos ouvido falar propriamente em “heróis de direita” pode estar relacionado com a identificação automática que qualquer um de nós faz com a imagem ascética do herói abnegado que dá a vida por um ideal, ou seja, a imagem subliminar de quem espia os nossos pecados, Jesus Cristo ou Spartacus; o líder inspirador e idealista, que corta com o presente, que luta contra a opressão dos mais fracos, que liberta, que transporta em si a mensagem de um mundo melhor e mais justo. Em certa medida, um messias.
Todas as lutas contra as mais brutais ditaduras na Europa e no resto do Mundo foram levadas a cabo por combatentes de inspiração ideológica Socialista-Marxista, e nem podia ser de outra forma, pois a desproporção de forças normalmente presente nestes conflitos, pressupunha desde logo um tipo de guerreiro muito diferente do convencional, abenegado e altruísta, pronto a morrer por uma causa, por uma ideia ou conceito, por um paraíso inatingível. O guerrilheiro socialista era por isso em larga medida indestrutível, já que nenhuma bala pode matar um conceito, uma ideia ou cortar a raiz a um pensamento. A impreparação dos governos ditatoriais ou coloniais para este novo tipo de combatentes, altamente moralizados, de grande mobilidade e capacidade de recrutamento, elusivos e usando tácticas de combate precursoras das usadas pelos exércitos de Aníbal do século 238 AC, a guerra de guerrilha, acabou com o tempo por resultar em feitos que se incluem hoje no cardápio mítico das lutas armadas da esquerda mais radical. As espetaculares vitórias destes movimentos de libertação de inspiração Marxista em Cuba, no Vietname, na Argélia, em muitas nações do continente Africano, mesmo em Portugal e um pouco por todo o mundo granjeou um misto de temor e respeito histórico que perdura até aos tempos de hoje.
Mas a conotação na sua gênese que o Socialismo Marxista possui com a sublevação armada de base ideológica foi com o passar do tempo motivo quer da inteligente exploração que a direita conservadora ou ultra-ortodoxa sempre soube fazer disso, adulterando a história e atiçando o medo entre as populações para com os “perigosos comunistas”, em especial nos tempos da caça às bruxas do Macartismo, mas foi também motivo de profundas cisões na sua base de apoiantes, sobretudo entre os que continuavam afetos ao confronto e mesmo à revolução armada como única solução, e os democratas liberais que preconizam uma esquerda moderna tendo como base filosófica o Socialismo Marxista e o pluralismo democrático como desígnio político.
O projecto e a mensagem de esquerda continua contudo, apesar da constante rescrita e readaptação, na sua essência complexo e confuso. Trata-se de um modelo social ambicioso, intrincado e assente numa base filosófica que estabelece desde logo o fim da pobreza e a total harmonia entre pessoas, raças e credos como o seu desígnio ultimo, o que muitos filósofos e sociólogos acham pura e simplesmente utópico e inconcretizável. Em certa medida, a missão de esquerda confunde-se com um idealismo de uma pureza e beleza desarmante, uma concepção do mundo e da condição humana que pressupõe desde logo uma estrutura mental que talvez ainda não exista no sapiens do século 20 ou 21, como a simples ideia de alguém estar disposto a ser um pouco mais pobre para um outro o deixar de o ser. Ao contrário da ortodoxia de direita, a esquerda Socialista encara o estado como a trave mestra de qualquer sociedade moderna, no sentido em que é o estado, representante do povo e da comunidade, o único que pode garantir a redistribuirão da riqueza e com isso a erradicação da injustiça e da pobreza. Aparelhos de estado fortes e poderosos, magnânimos e omnipresentes em tudo não podem contudo ter lugar em sociedades fortemente liberalizadas e globalizadas, onde a livre circulação de capitais e o empreendorismo privado são peças chaves no jogo frenético dos mercados financeiros. O estrondoso fracasso do já de si dúbio projecto Socialista na ex-URSS demonstrou a incompatibilidade intrínseca entre o Socialismo Marxista e o processo de Globalização pelo menos nesta sua matriz contemporânea; poderá o Socialismo ter sido a ideia certa na época errada? A aplicação prática das doutrinas Marxistas exige um delicado e estreito equilíbrio entre a preservação das liberdades individuais, um estado democrático pujante e uma perspectiva liberal nos laços económicos quer internos, quer externos; mas isto têm-se mostrado terrivelmente complexo e sempre a um passo de derrapar no totalitarismo mais básico, exactamente algo que se queria evitar de início. O ponto de vista Social-Democrata permite por isso o balanceamento possível entre o Liberalismo económico e todo o pacote ideológico da esquerda Socialista-Marxista, sugerindo uma política que cruza idealismo com realidade.
Uma sociedade justa, além de ser muito difícil de atingir (para não dizer impossível), custa imenso dinheiro. Barato é ter milhões de pessoas a viver debaixo de pontes com 100 eur por mês e depois uns milhares com 1000 eur ou mais para gastar em 24 horas. A incapacidade dos projectos de esquerda em se mostrarem sustentáveis em termos económicos, nem que no médio prazo, é no mínimo embaraçosa. Dar o suficiente a cada um para ter uma vida digna é imensamente caro, e o projecto social de esquerda, reminescente directo das velhas concepções Marxistas do Socialismo Científico, cai pela base porque normalmente não é possível de ser financiado. Ainda assim, todas as principais conquistas sociais feitas durante o século vinte no mundo ocidental foram-no por forças de pressão oriundas dos sectores socialistas e de esquerda do espectro político: o rendimento mínimo, o salário mínimo, as pensões de invalidez, pensões de sobrevivência, as reformas e até o simples limite ao número de horas que um ser humano pode ser obrigado a trabalhar em troca de um salário, foram tudo conquistas que orgulham e incham de superioridade as sociedades ocidentais, em particular a Europeia, apesar de agora estarem a ser postas em causa por não serem, afinal, sustentáveis financeiramente.
Apesar do fulgor revolucionário das décadas de 50, 60 e 70, e do Socialismo ter feito a sua metamorfose democrática inevitável (e desejável), perdendo um pouco do seu propósito no que refere à luta e intervenção armada de forma a acelerar a história, e ainda apesar do choque frontal com a globalização e com as economias baseadas nos mercados financeiros globais, é verdadeiramente impressionante a penetração que a esquerda sempre teve nas camadas mais inconformadas e irrequietas da sociedade: os mais jovens, de mente mais aberta e mais susceptíveis ao paradigma utópico e sonhador do Socialismo, e em particular nas artes subversivas, como a literatura, fotografia e cinema, onde pontificam nomes como Sartre, Genet, Hemingway ou Camus , Capa ou Mapplethorpe, Goddard, Truffaut, Pasolini, Bertolucci, Oliver Stone, Scorcese ou Mann e claro, na música, com exemplos mais recentes como os “Greenday“, os “Lamb of God” , “System of a Down“, ou os “Rage Against the Machine“. Raiva contra máquina, contra o sistema, punho erguido contra a opressão, o mote tradicional do guerrilheiro indestrutível e mártir, que continua bem vivo, mas agora reencarnado e um pouco mais fantasmagórico.
A ideologia de esquerda é intrinsecamente bela e apelativa, encerra em si um ideal libertador e prossecutor de uma espécie de paraíso inatingível, um mundo melhor, onde todos têm o seu lugar e vivem uma vida digna e feliz, em verdadeira comunidade. A esquerda é completamente integrativa e o conceito de pátria e país é alargado a todos, de todas as raças e diferenças, sejam estrangeiros, velhos ou crianças, homens ou mulheres, homosexuais ou transsexuais. A esquerda possui uma galeria de heróis míticos como Guevara ou Luther King que incorporam o combatente abenegado e indestrutível por sobreviver ao próprio tempo, e a ideia e o conceito que transcende a repressão ou o pelotão de fuzilamento. O socialismo tem uma aura subversiva que apela à inconformidade e à reinvenção, à transformação e evolução mesmo de um ponto de vista pessoal e humano. O socialismo preconiza o conceito de “somos” em vez de “sou”, no sentido em que fazemos parte, apelando à unidade e a fraternidade, emulando a perspectiva cristã no seu núcleo; amai-vos uns aos outros sem barreiras nem diferenças.