Dune
Daqui a várias dezenas de milhares de anos acontecerá a chamada “Revolução Butleriana”; antes disso, a humanidade tinha atingido um estranho período de profunda apatia e estagnação cultural. O mundo está saturado de tecnologia e os seres humanos tornaram-se hóspedes numa sociedade dominada por máquinas de inteligência superior que os acabam por escravizar. Após anos de resistência e resignação, a revolução eclode por todo o planeta e suas colônias espaciais, acabando as máquinas por ser derrotadas e o seu império completamente destruído. A revolução deixa contudo profundas cicatrizes na civilização humana, que numa tentativa de impedir o regresso ao seu passado recente, implementa uma espécie de retorno aos fundamentos que estruturam um ser humano: pensamento e filosofia, artes e meditação. Em consequência, são eliminados do dia-a-dia quaisquer vestígios de tecnologia, são destruídas todas as máquinas supérfluas, computadores e robots: os seres humanos passam a cultivar a mente e a meditação, e mesmo a arte da guerra sofre várias transformações, visto que os campos de força tornam inúteis os lasers, a luta corpo a corpo usando armas brancas é instituída, juntamente com um código militar que definirá as regras de disputa entre as várias casas galácticas. São fundadas duas escolas de pensamento: a Confraria dos Navegadores (“The Guild”), que cultiva a matemática pura e a Escola Benne-Gesserit, que cultiva a telepatia e a herança genética entre todos os seres humanos. A Confraria usa uma estranha substância chamada de “Especiaria”, ou Melange, para efectuar viagens interestelares, absolutamente vital para o equilíbrio do império, e que apenas existe num único planeta em todo o Universo: um planeta desértico, habitado por uma obscura raça aparentada aos humanos, os Fremen, que há muitos séculos esperam a chegada de um messias que os liderará numa revolta contra o Mundo Exterior. Esse planeta chama-se Arrakis, também conhecido como “Dune”.
Muito, mas muito resumidamente, este é o ponto de partida para a trama do filme de David Lynch, uma epopeia espacial que muitos críticos consideram a maior que alguma vez foi escrita, uma obra imaginada por Frank Herbert, que era biólogo de formação, e onde explana a sua preocupação com os problemas ambientais, em especial com a escassez de água potável no 3º mundo, com os povos proscritos da terra, representados em Dune pelos Fremen, com as super potências que os oprimem, os Impérios Corrino e Harkonnen, com a interferência da religião, que em Dune são as Bene Gesserit e do poder obscuro dos mercados financeiros, a Confraria dos Navegadores, sendo a sua vital Especiaria uma clara alusão ao dinheiro (e em particular ao petróleo). Dune é uma obra extensa, intrincada, povoada por personagens muito complexas, por intrigas palacianas e jogos de poder, um livro eminentemente político e filosófico, que muitos consideravam impossível de ser alguma vez adaptado ao cinema, um livro que está destinado a ser isso mesmo, um livro, uma tela em cada um pintaria o seu mundo longínquo, o universo distante da saga de Paul Atreides em Arrakis.
Alejandro Jodorowsky fez a primeira tentativa séria de adaptar Dune ao cinema, contando na bagagem com nomes que vão de Salvador Dalí aos Pink Floyd. O projecto cedo colapsou perante o seu próprio gigantismo, ficando para sempre o fascínio pelo que poderia ter sido este projecto, caso tivesse sido levado até ao fim. Dan O’Bannon, contratado como Designer de Produção viria mais tarde a escrever, entre outros, Alien e Total Recall, Jodorowsky ele próprio prosseguiria uma carreira marcada tanto pelo bizarro como pelo excessivo, e o projecto desta adaptação de Dune tornou-se de certa forma um objecto de culto que ainda hoje é idolatrado nos meios cinéfilos.
Raffaella De Laurentiis, filha do milionário e produtor Dino de Laurentiis, tinha também assegurado os direitos sobre a obra de Herbert, montando uma gigantesca produção em solo Mexicano, contratando Ridley Scott como realizador, cargo que viria contudo a abandonar pouco depois devido à morte do seu irmão mais velho de cancro, sendo substituído por David Lynch, que acabou por escrever o guião final de “Dune”. Hoje pensa-se que talvez tenha sido uma tarefa ciclópica para um homem advindo do cinema experimental, na altura com um êxito na algibeira, O Homem Elefante, e pouco mais que um talento óbvio. Lynch emprestou ao filme a sua visão arrojada e original, num art-concept original e belíssimo, numa realização que puxou pelo significado e pouco pelo conteúdo, pela fotografia das cenas de Arrakis e pela perspectiva onírica e transcendente de Dune. Pouca gente compreendeu. Dune é um filme lento e sem humor, em certa medida confuso e intrincado, o Barão Harkonnen foi muito alterado relativamente ao livro, onde era retratado como um líder inteligentíssimo (e com tiques pedófilos), no filme reduzido a uma figura grotesca e estranhamente vampiresca. Raban, uma das personagens centrais de Herbert, e o principal vilão de Dune, no filme surge como uma personagem secundária, o que enfureceu os fãs da saga, Alia, a irmã de Paul, é risível no filme, havia ainda o problema da idade de Paul, que no livro começa com 15 anos, seguindo depois o seu percurso até à idade adulta, mas que no filme parece estagnado nos seus vinte e poucos, o que é impossível numa história que tem um life-span de cerca de 30 anos!… E bom, muito mais haveria para se dizer.
Mas se assim é, porque é este Dune de David Lynch um filme de culto? Precisamente em parte por ter sido o filme impossível de ser feito, mas que se acabou mesmo por se fazer. Dele fica um retrato assombrosamente belo de uma civilização humana num futuro distante, plásticamente e conceptualmente a meu ver completamente inigualável na história do cinema. Um filme como uma ópera visual tremenda, uma tela cheia de contraste e beleza que nos suga para o mundo estranho e sedutor que Herbert imaginou na década de 70. Dune surge assim como o triunfo da audácia de tentar o impossível, adaptar uma obra colossal para o cinema, traduzindo e concretizando o seu mundo bizarro e distante. Por isso acabou por conquistar o respeito e simpatia de toda a comunidade cinéfila.