O Cardápio das almas
Um filme feito por uma mulher sobretudo para mulheres? Se calhar podemos falar assim porque nesta história os homens não existem, tratam-se de adereços cómicos ao enredo principal que fala da dependência feminina em relação ao seu corpo, melhor dizendo, e como insistentemente nos quer deixar claro a autora francesa: a dependência quase narcótica que as mulheres têm do quanto são desejadas; é isso que “acaba” aos 50, dito pela boca de Harvey, a repulsiva personagem de Dennis Quaid, a pergunta deixada em suspenso e que Coralie Farjeat quer que seja a audiência feminina a responder , e “O que acaba aos 50” é o mote para a história verdadeiramente horrorizante que de seguida se irá desenrolar, colando várias referências descaradamente óbvias sobretudo de Cronenberg mas também Kubrick, sem nunca deixar de nos induzir um desconforto constante já que, apesar de ser “lógico” o que a personagem de Demi Moore vai fazendo, cá dentro sentimos que aquilo é errado, antinatural e que vai acabar mal. Enfrentar o tempo, tentar ser jovem e bela novamente, torna-se aqui um anátema perverso: a busca pela juventude exige um preço alto, revelando o egoísmo e a superficialidade da jovem protagonista, objeto do desejo masculino (um ponto que a diretora sublinha — o desejo dos homens), enquanto essa busca literalmente consome a vida de seu alter ego mais velho. Esse é o castigo para quem tenta subverter as regras naturais do tempo e, por isso, a regra fundamental do uso da Substância: Elisabeth e Sue são a MESMA pessoa, compartilhando assim o mesmo destino.
Filmado como um videoclipe (com diálogos reduzidos ao mínimo), “Substance” usa uma direção de fotografia que privilegia grandes angulares, superfícies frias e brutalistas, cores plásticas em tons primários, tudo desprovido de afeto ou emoção. O filme é acima de tudo um documento visual que explora o universo visceral e transgressor de David Cronenberg — o corpo, a carne, a penetração, a destruição —, ao mesmo tempo que expõe a absurda dependência das mulheres de hoje pela aparência física, especialmente na era das redes sociais, onde são exibidas como num cardápio, e as implicações sociais dessa exposição. Pelo caráter quase simbólico, pelo arrojo visual, pela ambição e pelo descaramento, este é um dos filmes centrais da última década.