No rodapé da história
Resistindo ao óbvio “eu avisei”, é necessário ir mais fundo: a nulidade de Kamala Harris não explica tudo, o verdadeiro problema é uma candidata que não consegue articular sequer uma frase direcionada aos operários do Rust Belt, preocupados com o desemprego, ou para com os trabalhadores da Boeing em greve. Sobre a questão migratória, a sua abordagem foi confusa e atabalhoada, e antes dela, Biden já mostrava a sua face de lobo hipócrita, especialmente em relação a Gaza: não é possível ser de esquerda e conivente com um dos maiores genocídios da história da humanidade; essa nesma história que os julgará aos dois. Depois, Biden sai tarde e Kamala é candidata não se sabe bem porquê, Obama apoia temerário e percebe-se de onde vinham as dúvidas, uma candidata que só deita cá para fora frases feitas feministas que deve ter decorado na noite anterior não augurava nada de bom efectivamente. O ressentimento do eleitorado masculino é uma das marcas óbvias desta eleição, os homens sentem-se desprezados e esquecidos por uma emancipação feminina que perde gás nos últimos anos porque incompreensivelmente se entrincheirou num getto intelectual de esquerda de que ninguém quer saber realmente, Kamala perde nos jovens e mesmo nas jovens mulheres os ganhos são pífios – o feminismo sai esmagado destas eleições e não vai escapar a um longo olhar ao espelho; a política de cancelamento, por exemplo, e a sua conotação, por vezes injusta é certo, dá uma má imagem a um movimento que devia ser progressista e parece mais censório e fascizoide, um autêntico desastre para a esquerda democrática. As pessoas estão preocupadas com o custo de vida, a habitação e o emprego, para mim foi penoso e chocante testemunhar uma candidata democrata, uma social democrata, a debitar banalidades durante meses, sem uma ideia clara, sem uma medida concreta, nada, só conversa fiada: o fim do Bullshit adivinhava-se e chegou hoje. O mesmo Bullshit que sustenta a guerra na Ucrânia e patrocinava o massacre em Gaza é a face de uma certa esquerda mais global que gosta de falar em câmaras de eco com gente a acenar que sim e a concordar, passando ao lado dos verdadeiros problemas das pessoas: emprego, custo de vida, habitação e saúde; e que de uma forma autista para mim difícil de explicar entrega à direita e à extrema direita a questão migratória – a social democracia TÊM de abordar esta questão sem complexos, sem amarras sociológicas e de forma humanista. As próximas décadas serão das pessoas comuns que viraram as costas às elites endinheiradas, aos artistas milionários, a gente que vive noutro mundo: é preciso trazer a produção industrial de volta para este lado, fomentar emprego, dar prespectivas às pessoas da rua, é preciso a Europa perceber rapidamente que a globalização acabou em 2008 e que a partir de agora está sozinha no ringue.