Os (novos) Miseráveis

Os (novos) Miseráveis

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Há uma cena no filme onde uma mãe recém promovida à classe média, já afectada pela súbita amnésia da sua vida recente, ameaça uma pobre desempregada de que chama a polícia, enquanto esta lhe implora que a ajude, a ela e ao seu marido indigente a manter o segredo que a perseguiu toda a sua vida; ou seja, o pobre sentia-se já rico, e com os tiques dos ricos, a mesma indiferença perante os pobres, a mesma ganância básica, a mesma insensibilidade e altivez idiota…

A obra prima de Bong Hoon Jo sobre a volatilidade da moral é também um filme incômodo, pois subitamente nos reconhecemos a nós e aos outros dentro daqueles limites e daquele micro cosmos de duas famílias separadas pela desigualdade brutal e ridícula de uma Coreia globalizada; um pai com um ‘plano’, um filho que o ama, uma mãe estremosa, e uma filha muito bonita (incrível a beleza de So Damm Park), que dizem ter futuro como actriz, uma perua de alta sociedade um pouco louca e o seu marido, um novo rico emanado da indústria das TI’s. Tudo em ‘Parasite’ é cuidadosamente planeado e pensado para ter uma mensagem ou um significado, numa história cheia de camadas de interpretação, num filme que revisita vários gêneros, da comédia ao thriller, e onde as personagens passam de boas a más, numa alusão perfeita à nossa humanidade como pessoas e cidadãos, parte de uma engrenagem social que não nos dá escolhas mas caminhos a percorrer.

Cartaz de “Parasite”

Além do ambiente sombrio de ‘Parasita’ e a sua mordaz crítica à condição humana refém das sociedades capitalistas fica também um olhar próximo sobre panaceia dos mais afortunados, aqui retratados como gente meio robótica, um pouco brainless, sectários e profundamente preconceituosos, sem motivação ou paixão em contraponto aos mais pobres, cheios de planos, de sonhos e em particular de um estranho sentimento de resignação, uma terrível aceitação do seu destino traduzido aqui num dia a dia como se fosse um filme imprevisível, e em particular no final brutal que o realizador nos guardou, como testemunho da inevitabilidade do seu destino, em resposta à raiva, a humilhação e ao ressentimento, que é sem dúvida a semente da violência.

Parasitas são isso mesmo: organismos que sugam recursos a uma sociedade hospedeira, sem condição ou futuro, numa luta diária e incerta pela sobrevivência, a metáfora perfeita para esta obra prima que marca já de forna indelével o cinema deste princípio de século.