O inverno vermelho de Kiev

O inverno vermelho de Kiev

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Desde 24 de Fevereiro de 2022 que habitamos um mundo diferente. E uma certa atmosfera de faz de conta prevaleceu durante bastante tempo, apesar das sucessivas chamadas à terra por parte de vários militares e ex militares na televisão. Os media exportam emoções, narrativas e sentimentos, e isso está certo, esta cobertura da guerra foi de longe a mais bem feita, autêntica e corajosa que testemunhei em toda a minha vida. A figura do repórter de guerra ressuscitou em pleno, devolvendo ao espectador uma imagem próxima do conflito como ele é, junto das populações, fazendo de nós testemunhas próximas, em certa medida até participantes por procuração, e isso, como disse, é excelente: nada como mostrar a verdadeira face da guerra, por muito feia que ela seja. A guerra não é boa, não é romântica e não é heróica.

O problema é que falta um lado; nada sabemos sobre os soldados russos, a máquina de guerra russa, as populações pro russas, os rebeldes do Donbass, tudo isso, ironicamente, está do outro lado de uma cortina, e isso cria em si uma narrativa, a nossa narrativa, que provavelmente está errada porque incompleta. A cortina sobre Moscovo foi colocada desde logo pelo ocidente, e é preciso ter cuidado com estas medidas discricionárias disfarçadas com o lençol sempre translúcido da legitimidade. Não há grande legitimidade nisto, e pode ser apenas a antecâmara da censura, apenas mais um degrau que nos faz descer à cave dos agressores que tentamos combater moralmente. Tapando a objectiva do que vem do outro lado, ficamos com a desinformação Ucraniana, que também existe, certo? E em alguns pontos é particularmente ridícula, se bem que entendível. Nunca se esqueçam: a verdade é a primeira vítima da guerra, e devemos ter emissários dos dois lados; pouco sabemos sobre o que se passa nas ruas de Moscovo, sobre a linha da frente na parte russa, sobre a batalha interna dentro das próprias cadeias de comando, que se desconfia que existe, com uma parte dos oficiais a defenderem a campanha aérea sobre as cidades Ucranianas, para proteger as tropas no terreno, o que seria uma catástrofe completa.

Nas guerras não pode haver encobrimento de abusos, não interessa de que lado, e crimes ou intolerância, devem ser sempres denunciados. O governo de Ucrânia, como se sabe, é problemático no que diz respeito à questão racial, apesar de Zelensky ser ele próprio judeu, e o batalhão “Azov” nada mais ser do que um bando de executores de extrema direita nazi à margem da lei, tudo isto é encaixado num enquadramento maior de invasão ilegal, guerra e destruição, e é dessa forma que devemos escalonar as ameaças e os problemas. Sem dramas, devemos denunciar os abusos que estão a ser cometidos na fronteira da Polónia, ponto final, parágrafo.

Do efeito de ressalto das sanções internacionais vem a inflexão na estratégia militar Russa: cansar a população ocidental. É que Putin sabe que o seu povo aguentará muito mais as provações, que não serão mais do que um pequeno incremento ao já de si difícil quotidiano de um russo médio, do que os “mimados” ocidentais que desde momento em que lhes começe a pesar na carteira depressa deixarão cair os Ucranianos. É assim a vida, e Macron percebeu-o rapidamente, e em ano de eleições históricas, desdobra-se em contactos telefónicos, na tentativa que a coisa se resolva depressa; está-se assim numa espécie de bluff recíproco: a Europa e EUA sabem que têm apoio para no máximo 2, 3 meses, e os Russos sabem que podem moer enquanto a economia aguentar em serviços mínimos.

E com o passar dos dias, do tempo, as ilusões esfumam se lentamente e a realidade toma o controlo: a Ucrânia vai perder a guerra, a NATO não vai ajudar porque teme a Rússia, a Europa está paralizada no garrote da energia, a Turquia desespera mas prefere negociar depois, e a China procura o seu momento. Nos despojos incandescentes de uma Ucrânia que será memória, expiaremos depois a nossa culpa.